Carmen da Silva, uma rio-grandina precursora do feminismo brasileiro.

Histórias híbridas 40 anos depois
26 de abril de 2024
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Histórias híbridas 40 anos depois

Abril de 2024, momento para lembrar as quatro décadas da publicação de Histórias híbridas de uma senhora de respeito (1984), último livro de Carmen da Silva. Assim como Comba Marques Porto, ainda estou convencida do quanto é necessário invocar o pensamento dessa rio-grandina. Muito do que ela pensou e disse há meio século permanece atual, “em especial a arte com que se dedicou a questionar as desumanidades do machismo e da cultura patriarcal, o que fez com plena consciência das dificuldades quanto à percepção de suas reflexões, sem jamais preconizar soluções “tiradas da cartola”, que muitas leitoras exigiam, habituadas que estavam com o cliché dos conselhos prontos das revistas femininas” (2015, p.22).

 “Ateia e sartreana, acredito que a existência em si não tem qualquer significado ou finalidade. Tanto melhor: cabe a nós, os viventes, edificar sobre o vazio, construindo num terreno sem entulho nossa própria razão de viver. A minha se chama precisamente nós, os viventes. De hoje e de amanhã. Aliás, se possível, com duração indeterminada. E de preferência instalados num mundo decente e mesmo razoavelmente aconchegante. Tarefa para moralista nenhum botar defeito” (1984, p. 188).

Em Para ler Carmen da Silva (HANCIAU, N.; ALVES, Francisco das Neves, 2019), há mais sobre esse livro quase cinquentenário.

Kelley Baptista Duarte, informa que essa “obra se apresenta como uma retrospectiva que reflete a respeito da construção de uma personalidade feminina e coincidentemente respeita as insinuações do limite da vida. A subversão, nessa obra, se destaca pela ruptura da referencialidade de um eu absoluto. A retrospectiva memorial é resgatada a partir da narrativa de sua experiência de vida relacionada à vida de outras mulheres. É assim que C. da Silva justifica a palavra “hibridas” do título” (p.117).

Para Aimée Bolaños, Carmen da Silva escreve suas Histórias híbridas em um “mundo iluminado pela luz mais certa”, narrando a progressiva descoberta de si e do mundo da vida. Assim o livro testemunha literariamente sua autopoiesis, processo que os romances de formação e de artista configuram exemplarmente.Joia e flor rara é este livro da mulher-artista que narra a própria vida em um texto que vai culminar – sem que sua autora o saiba – em uma obra de relevantes significados socioculturais e literários. Significativamente, em Histórias híbridas a vida se transforma em obra” (p. 201-202). 

Ana Rita Fonteles Duarte lembra que Carmen da Silva carregava consigo dois elementos importantes para o exercício de escrever para as mulheres suas histórias híbridas: “a experiência de vida diversa do que se esperava de uma mulher de seu tempo, um texto leve, embora trabalhado, sem rusgas de autoritarismo e moralismo e baseado fortemente no instrumental da psicanálise. Nesse último fator residiria o principal diferencial da linguagem de Carmen, uma vez que ela procurava centrar sua análise em crítica aprofundada, situando a responsabilidade individual dentro dos limites da trama social (p. 63).

A baiana Maristela Lopes em seu ensaio aponta para o títuloHistórias híbridas de uma senhora de respeito, aproximando-o do pensamento de Simone de Beauvoir, autora da atemporal e célebre frase, On ne naît femme, on le devient de O segundo sexo, que serve de epígrafe para essa sua narrativa de caráter autobiográfico. Beauvoir, autora de Mémoires d’une jeune fille rangée a motivou emocionalmente e, de certo modo, determinou não só o que Carmen era naquele momento, mas também a sua luta e a sua filosofia de vida. “Suas Histórias híbridas, em que mistura experiências próprias e alheias, são, pois, um espaço literário para se pensar a condição da mulher” (p.138).

Dentre as tantas artes de Carmen da Silva, sobressai a de não ser esquecida, a de permanecer na memória das pessoas que admiram sua história, sua obra, sua personalidade e sua parceria com a liberdade.