Carmen da Silva, uma rio-grandina precursora do feminismo brasileiro.

Carmen da Silva - A arte de ser Carmen da Silva, por Marcelo Soares
8 de novembro de 2024
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Carmen da Silva - A arte de ser Carmen da Silva, por Marcelo Soares

 

* Publicado originalmente no jornal Correio da Manhã (18/01/1968)

Carmen da Silva é uma força da natureza. Como toda a pessoa de audição limitada (ela mesma diz que tem “ouvido duro”), fala em voz alta. Isto se ajusta tremendamente às suas ideias, que são, pode-se dizer, “ideias em voz alta”. Ela não tem papas na língua. Quando chega a hora de dar nomes aos bois, não usa nenhum eufemismo; suas posições são sempre polêmicas, o que surpreende num país de opiniões tépidas como o Brasil. Opiniões bem de rio-grandense especial, cuja formação de cultura se fez sob a pressão de uma cidade bem mais cosmopolita que Rio ou São Paulo, como é Buenos Aires. Lá ela publicou um livro de ficção premiado, Setiembre, um dos primeiros a lançar em literatura o dialeto portenho – o que causou sensação. E de volta ao Brasil a estória do seu sucesso já é conhecida: artigos em Reunião, e agora em Claudia, um programa próprio de televisão, o livro Sangue sem dono e o best-seller A arte de ser mulher, ambos da Civilização.

- Qual é a sua vivência do ambiente cultural em Buenos Aires, principalmente em comparação com o nosso aqui no Rio de Janeiro, e no Brasil em geral?

- Há uma diferença fundamental: no Brasil, o autor nacional é bastante mimado pelos editores. Aqui, pelo menos nas grandes cidades, o autor nacional encontra campo para editar suas obras. Já na Argentina, não; a Argentina é um mercado voltado para o exterior, para as traduções. Então o autor argentino até algum tempo atrás – uns quatro ou cinco anos atrás – por mais que já tivesse um livro excelente, que tivesse sido um ótimo negócio para o editor, por mais que tivesse sido premiado, por mais que tivesse sucesso, quando tinha outro original para publicar, era um verdadeiro via crucis de editor em editor, que, inclusive, não queriam ler os originais de autores nacionais. Isso, por um lado, é tremendo para a literatura argentina; mas por outro tinha a vantagem de que cada autor pensava muito antes de escrever um livro. Em geral os autores de um certo nível só escreviam um livro muito maduros - e se expressavam muito no “bate-papo” – de modo que uma reunião de intelectuais argentinos em geral é de alto nível. A tensão intelectual, a preocupação por colocar os problemas – de literatura, de estética, da realidade nacional – é enorme. Ao passo que no Brasil, quando se encontra um autor brasileiro para um “bate-papo” ele fala de futebol, de praia ou de carnaval, porque ele se expressa através de seus livros e sabe que tem a facilidade de editar na medida em que for produzindo.

- Quanto à situação cultural no Brasil, qual seria a sua impressão tendo conhecido a “de fora”?

- A coisa é muito vasta. Em primeiro lugar o subdesenvolvimento não é apenas econômico, é também cultural, No Brasil, como em qualquer sociedade subdesenvolvida, o criador é um sujeito que está, de certo modo, só, não tem tradição, não tem antecedentes em torno de si. Um escritor francês, por exemplo, tem inclusive um idioma que há trezentos anos já está estruturado – nós não temos ainda nem sequer um idioma estruturado. Além do problema do subdesenvolvimento, existe o problema que está na base do problema do subdesenvolvimento, que é o problema do colonialismo. Aliás, eu vou repetir aqui uma frase que não é minha, é de Roland Corbisier: “Quando se importa aparelhos de televisão e coca-cola, automaticamente se importa a cultura implícita no aparelho de televisão e na coca-cola”. Ou seja, quem produz apenas matérias-primas e importa manufaturados não pode ter uma cultura própria. De modo que há uma coisa básica que é o problema do subdesenvolvimento, que é geral, é econômico, é político, é cultural, é total.

Mas há também o problema de conjuntura do momento. Nós estamos vivendo uma situação em que a atividade de pensamento está encontrando dificuldades enormes de expressão. Vemos isto numa questão que, agora, está muito atualizada, que é a questão da censura. Toda ideia que não esteja dentro do esquema tradicional, é subversiva. Há o problema da expressão, da linguagem, do nome feio, o temor do erotismo, existem milhões de medos, em última instância, o que é que existe? A opressão à cultura.

Acho eu, no entanto, que esses períodos difíceis favorecem um florescimento, digamos, interno, de movimentos culturais. Não é quando tudo é maravilhoso, quando se vive em plena euforia que o criador se sente mais estimulado. Ele precisa de angústia. E nós estamos vivendo uma angústia tremenda no Brasil, porque enfim, qualquer pessoa que tenha consciência, que tenha os olhos abertos, sabe que nós vivemos em um país do terceiro mundo, onde quase a metade da população morre de fome, mais da metade é analfabeta – sem falar dos semi-alfabetizados que andam pontificando por aí – tudo isso é um acicate, é um aguilhão tremendo para a criação cultural. O que acontece, porém, é que o escritor no momento não tem os meios de chegar ao público. Deve-se estar fermentando um movimento cultural importantíssimo no Brasil.

- Como é que essa situação se reflete na mulher, especificamente?

- Eu acho que a mulher não está à margem da situação geral. Num país desenvolvido, a situação do povo em geral é melhor, e a mulher é parte do povo. Quanto mais subdesenvolvido um país, quanto mais atrasado, sobretudo economicamente, maior é a opressão de um grupo por outro. Existe a opressão dentro da sociedade, assim como a opressão paternalista do homem sobre a mulher – mas a verdade é a seguinte: eu escrevo, e luto, pela emancipação da mulher, não porque ache que essa emancipação é possível por si só, mas simplesmente porque eu não me sinto com as forças nem a capacidade de empreender uma batalha global. Eu escolhi um campo específico para batalhar – mas eu não acredito na emancipação da mulher se não há emancipação econômica do povo em geral.

Quando eu falo através de revistas ou conferências, eu estou me referindo à mulher de classe média, que na realidade é o meu público. Você sabe muito bem que não se escreve para o povo num país onde o povo, além de ser analfabeto, não tem capacidade aquisitiva para comprar livros e revistas. Eu não sei a linguagem do povo; teria que aprendê-la. Eu escrevo para a mulher da classe média esgote o problema da mulher ou o problema nacional.

A mulher da classe dominante é livre, se casa ou descasa com mais facilidade, enfim, não existem esses problemas. Na classe operária, o problema econômico é tão premente, tão grave, que o resto desaparece. De maneira que lutar pela emancipação da mulher de classe média é apenas minha contribuição numa luta que eu não me sinto em condições de enfrentar totalmente.

 

 

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Carmen da Silva montagem

Correio da Manhã  (18-1-1968)

Marcelo Soares

                Carmen da Silva é uma força da natureza. Como toda a pessoa de audição limitada (ela mesma diz que tem “ouvido duro”), fala em voz alta. Isto se ajusta tremendamente às suas ideias, que são, pode-se dizer, “ideias em voz alta”. Ela não tem papas na língua. Quando chega a hora de dar nomes aos bois, não usa nenhum eufemismo; suas posições são sempre polêmicas, o que surpreende num país de opiniões tépidas como o Brasil. Opiniões bem de rio-grandense especial, cuja formação de cultura se fez sob a pressão de uma cidade bem mais cosmopolita que Rio ou São Paulo, como é Buenos Aires. Lá ela publicou um livro de ficção premiado, Setiembre, um dos primeiros a lançar em literatura o dialeto portenho – o que causou sensação. E de volta ao Brasil a estória do seu sucesso já é conhecida: artigos em Reunião, e agora em Claudia, um programa próprio de televisão, o livro Sangue sem dono e o best-seller A arte de ser mulher, ambos da Civilização

- Qual é a sua vivência do ambiente cultural em Buenos Aires, principalmente em comparação com o nosso aqui no Rio de Janeiro, e no Brasil em geral?

- Há uma diferença fundamental: no Brasil, o autor nacional é bastante mimado pelos editores. Aqui, pelo menos nas grandes cidades, o autor nacional encontra campo para editar suas obras. Já na Argentina, não; a Argentina é um mercado voltado para o exterior, para as traduções. Então o autor argentino até algum tempo atrás – uns quatro ou cinco anos atrás – por mais que já tivesse um livro excelente, que tivesse sido um ótimo negócio para o editor, por mais que tivesse sido premiado, por mais que tivesse sucesso, quando tinha outro original para publicar, era um verdadeiro via crucis de editor em editor, que, inclusive, não queriam ler os originais de autores nacionais. Isso, por um lado, é tremendo para a literatura argentina; mas por outro tinha a vantagem de que cada autor pensava muito antes de escrever um livro. Em geral os autores de um certo nível só escreviam um livro muito maduros - e se expressavam muito no “bate-papo” – de modo que uma reunião de intelectuais argentinos em geral é de alto nível. A tensão intelectual, a preocupação por colocar os problemas – de literatura, de estética, da realidade nacional – é enorme. Ao passo que no Brasil, quando se encontra um autor brasileiro para um “bate-papo” ele fala de futebol, de praia ou de carnaval, porque ele se expressa através de seus livros e sabe que tem a facilidade de editar na medida em que for produzindo.

- Quanto à situação cultural no Brasil, qual seria a sua impressão tendo conhecido a “de fora”?

- A coisa é muito vasta. Em primeiro lugar o subdesenvolvimento não é apenas econômico, é também cultural, No Brasil, como em qualquer sociedade subdesenvolvida, o criador é um sujeito que está, de certo modo, só, não tem tradição, não tem antecedentes em torno de si. Um escritor francês, por exemplo, tem inclusive um idioma que há trezentos anos já está estruturado – nós não temos ainda nem sequer um idioma estruturado. Além do problema do subdesenvolvimento, existe o problema que está na base do problema do subdesenvolvimento, que é o problema do colonialismo. Aliás, eu vou repetir aqui uma frase que não é minha, é de Roland Corbisier: “Quando se importa aparelhos de televisão e coca-cola, automaticamente se importa a cultura implícita no aparelho de televisão e na coca-cola”. Ou seja, quem produz apenas matérias-primas e importa manufaturados não pode ter uma cultura própria. De modo que há uma coisa básica que é o problema do subdesenvolvimento, que é geral, é econômico, é político, é cultural, é total.

Mas há também o problema de conjuntura do momento. Nós estamos vivendo uma situação em que a atividade de pensamento está encontrando dificuldades enormes de expressão. Vemos isto numa questão que, agora, está muito atualizada, que é a questão da censura. Toda ideia que não esteja dentro do esquema tradicional, é subversiva. Há o problema da expressão, da linguagem, do nome feio, o temor do erotismo, existem milhões de medos, em última instância, o que é que existe? A opressão à cultura.

Acho eu, no entanto, que esses períodos difíceis favorecem um florescimento, digamos, interno, de movimentos culturais. Não é quando tudo é maravilhoso, quando se vive em plena euforia que o criador se sente mais estimulado. Ele precisa de angústia. E nós estamos vivendo uma angústia tremenda no Brasil, porque enfim, qualquer pessoa que tenha consciência, que tenha os olhos abertos, sabe que nós vivemos em um país do terceiro mundo, onde quase a metade da população morre de fome, mais da metade é analfabeta – sem falar dos semi-alfabetizados que andam pontificando por aí – tudo isso é um acicate, é um aguilhão tremendo para a criação cultural. O que acontece, porém, é que o escritor no momento não tem os meios de chegar ao público. Deve-se estar fermentando um movimento cultural importantíssimo no Brasil.

- Como é que essa situação se reflete na mulher, especificamente?

- Eu acho que a mulher não está à margem da situação geral. Num país desenvolvido, a situação do povo em geral é melhor, e a mulher é parte do povo. Quanto mais subdesenvolvido um país, quanto mais atrasado, sobretudo economicamente, maior é a opressão de um grupo por outro. Existe a opressão dentro da sociedade, assim como a opressão paternalista do homem sobre a mulher – mas a verdade é a seguinte: eu escrevo, e luto, pela emancipação da mulher, não porque ache que essa emancipação é possível por si só, mas simplesmente porque eu não me sinto com as forças nem a capacidade de empreender uma batalha global. Eu escolhi um campo específico para batalhar – mas eu não acredito na emancipação da mulher se não há emancipação econômica do povo em geral.

Quando eu falo através de revistas ou conferências, eu estou me referindo à mulher de classe média, que na realidade é o meu público. Você sabe muito bem que não se escreve para o povo num país onde o povo, além de ser analfabeto, não tem capacidade aquisitiva para comprar livros e revistas. Eu não sei a linguagem do povo; teria que aprendê-la. Eu escrevo para a mulher da classe média esgote o problema da mulher ou o problema nacional.

A mulher da classe dominante é livre, se casa ou descasa com mais facilidade, enfim, não existem esses problemas. Na classe operária, o problema econômico é tão premente, tão grave, que o resto desaparece. De maneira que lutar pela emancipação da mulher de classe média é apenas minha contribuição numa luta que eu não me sinto em condições de enfrentar totalmente.

 

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