Carmen da Silva, uma rio-grandina precursora do feminismo brasileiro.

Conheça as crônicas destaque do II Concurso Literário Carmen da Silva
30 de agosto de 2022
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Conheça as crônicas destaque do II Concurso Literário Carmen da Silva

O II Concurso literário Carmen da Silva divulgou o resultado das cronistas e dos cronistas selecionados no início do mês de agosto. Ao todo, dezessete crônicas foram escolhidas e irão compor um e-book que será produzido pela Editora da FURG.

Dentre os textos que participarão da edição digital, três foram considerados destaques: Gramática de ca(u)sa, de Maria Gabriela Cardoso; Andorinhas, de Patrícia Baldez Américo Minervino; e Letras de batom, de Ivan Domingos Oliveira Reis. A lista final está disponível aqui.

Leia, na sequência, as crônicas na íntegra:

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Gramática de ca(u)sa

por Maria Gabriela Cardoso

Homero foi para o seu escritório. Segui para o meu, que ficava bem distante do dele, quase do outro lado da casa. Como nasci em uma família de classe média, ficava mais próximo do que das outras mulheres, mas, ainda assim, dava uma longa caminhada. De paredes roxas em baixo-relevo, um abajur bege com saia e uma pilha de revistas sobre comportamento e maquiagens, era lá que eu ficava a maior parte do tempo. Seria coisa fácil e rápida. História do dia a dia. Logo terminaremos – pensei. Refleti sobre contos de fadas, mas isso não seria uma crônica, então pensei mais um pouco e uma personagem sem graça entrou em cena. Não trabalhei muito o seu perfil psicológico, isso seria o de menos. Uma boa descrição externa a resumiria, e isso já bastava para a trama. Fiz um rabisco no papel, em pouco tempo tinha uma palavra. Girei a caneta nos dedos olhando o reflexo da janela. Era o passado. Menstruou? Não é menina, é mulher. De uma linha a outra, um beijo – está no caminho certo, mulher tem que pensar no futuro e fisgar um casamento. Eu nem ao menos sabia o que escreveria, mas todos já conheciam a história, é claro. Quando se esquece a pílula, tem que tomar duas seguidas ou apenas uma? Não sabia. E preservativo, é cem por cento confiável? Mas e quando o companheiro convence a não usar? Como proteger o peito? E lá caminhava transbordando em culpa. Dois traços ditavam o que viria. Alguém bateu à porta, era a família. Disse que precisava escrever uma crônica, mas nem deram bola. Enjoos, micção frequente, uma barriga. Vírgulas indevidas. Mas é mulher, mulher não tem margem pra erros, tem que saber. Apenas um filho, muitas interrogações. Não era o que queria, mas era preciso esconder. Fechei as janelas, havia muita gente lá fora me olhando, muitos eu nem conhecia. Foi mais difícil escrever no escuro, mas preferi assim. Sentei novamente, precisava pensar na personagem, o telefone tocou, estava desempregada. A empresa havia dispensado durante a licença-maternidade. A criatividade se perdeu. Mais algumas palavras foram rabiscadas de qualquer jeito, tão desconexas quanto a cronologia da história. Eram noites insones, choros secretos e mamilos rachados. As pernas inchadas e o corpo mudado dificultavam o processo de escrita. O espelho nem me via mais. Uma suposta traição, mas era aquele lema: a mulher faz o homem. Como escrever quando seu personagem nem sabe quem ele é, pois precisa pensar nos outros? O olhar de indiferença do companheiro pesava mais que a sobrecarga. O amor também dói. Ele logo voltou a viver e eu me via cada vez mais presa. Preciso de mais horas no dia – repetia. Não era pouco tempo, era muita demanda. Chorei desandando a rima. Três exclamações seguidas. Era um pedido de ajuda, porém disseram que a gramática não aceita. Era exagero meu, então apaguei e fingi esquecimento. Homero bateu à porta, queria jantar, eu já não sabia mais em que parte da crônica estava. Quando voltei, não encontrei os papéis que havia deixado. Talvez alguém houvesse posto no lixo ou simplesmente o vento jogara longe. Tive que reescrever. A história estava péssima. A personagem encontrava-se entre parênteses e tudo em volta em caixa alta. Mas uma coisa aliviava: era das mais sem graça, mas não das piores, onde o ponto final é marcado à bala. Mais uma vez bateram à porta, era Homero avisando que sua crônica estava finalizada e corrigida. Fiquei surpresa. Antes de sair, me informou que o nosso filho havia acordado e precisava de mim enquanto ele ia para o trabalho e depois ao curso. Escrevi no papel que era preciso "agüentar", mas sem lembrar que já não se usa mais trema há muito tempo. Algumas lágrimas invadiram a história e lá fui direto ao papel de coadjuvante. “Foi só lá pela quinta ou sexta vez que apercebi, com um impacto que me tirou a respiração, o que a essas alturas já era o óbvio gritante para todo mundo: a coisa compulsiva, o círculo vicioso, nossas manobras de cachorro querendo abocanhar o próprio rabo” (SILVA, Carmen da, 1984, p.53). Na madrugada, com a liberdade em aspas, quando todos já estavam dormindo e os fios brancos cobriam toda a minha cabeça, percebi que no papel estavam apenas algumas linhas escritas e a morte estava bem adiante.

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Andorinhas

por Patrícia Baldez Américo Minervino

“[...] mulheres, que, aos poucos e imperceptivelmente, acabaram por cair numa armadilha tão compacta e intrincada que só mesmo um milagre as poderia resgatar. Por exemplo, mulheres já de certa idade, sem recursos econômicos e culturais, dependendo totalmente do companheiro para a subsistência própria e dos filhos, e suportando brutalidade, maus-tratos, humilhações, o exercício despótico do poder econômico e da autoridade marital. É uma situação frequente, sobretudo em nosso meio rural; muito fazendeiro só não marca a mulher com ferro em brasa porque não faz falta: ao contrário do gado, ela sabe a quem pertence e se mantém dócil dentro do cercado. Até o dia em que não aguenta mais e quer cair fora. E quando me escreve pedindo que eu lhe aponte um caminho, sinto-me eu também num beco sem saída” (SILVA, Carmen da. Abracadabra! In: Mulherio, mar.-abr. 1981).

Chamaram as duas de loucas. Por anos. De todas as formas e em todos os lugares possíveis. Na paróquia do pastor histriônico, foi aos berros e convocando o fogo do inferno. No almoço de domingo na vizinha, foi baixinho, que era para não provocar o velho amigo – agora abandonado. Talvez ainda desse um caldo e Dona Sol pensava em recomendar à Luzia, assim que a fofoca e a noite esfriassem um pouco mais. Na praça, foi aos risos. Os mais honestos caçoavam sem dó: cansou de levar pau.

 Mas só havia um fato relevante. Não importa a altura da fala, elas não ouviram. Estavam bem longe dali, conforme decidiram, assim que optaram pelo amor. Como assim amor entre mulheres? Amor entre velhas? Amor entre mães? Logo mais um pouco, serão até avós! Se tudo seguir como anda, talvez de um mesmo neto. Que destino! Que palhaçada! E por quê? Se o Zé dava de um tudo para ela? Don’Ana sempre foi meio estranha mesmo. Mas Maria...

Esqueci! Ou fingi não ver, como o resto da vila fazia há pelo menos duas décadas. Havia outro fato relevante. Seu José dava mesmo de um tudo. Inclusive bofetões.

Alguém contou que, certa vez, chegando sem avisar para o bolo do fim do dia, ouviu da porta: você me provoca, Maria. Um dia vou lhe dar uma tão forte que você vai sair voando da minha frente. Naquele momento, quem voou foi a visita. Ia fazer surpresa e acabou surpreendida. Mas não demorou muito para ele dar o que prometeu e ela realmente voou.

Então não importou o tamanho da curiosidade de cada morador do pequeno vilarejo, eles jamais saberiam a resposta. Não a verdadeira. Não a completa. Como Maria nunca foi escutada – nem na igreja, nem na vizinha, nem na praça –, elas resolveram que também não ouviriam nada de seu ninguém. Já iam longe quando o burburinho se formou. Mas todos intuíam a razão daquela tal loucura ter começado. Ou ido tão distante.

Eu, pequena, só passava férias por lá; matando saudade da vovó, que hoje é o que me mata. Saudade do colo dela e daquela vida simples, que parecia mais viajar no tempo do que no espaço. Será que ainda existe interior assim?

Quando a cidade é pequena, a história de cada pessoa muda a vida de todas as outras. A fuga de Maria e Don’Ana alterou até o clima do verão. Não achei ruim. Tinha muito interesse nessa história. Era assunto proibido! Embora fosse o que mais se falava.

No primeiro janeiro, logo depois das fujonas terem resolvido sumir na véspera de Natal, era comum ouvir: não fale na frente das crianças! Seguido de um “xô, xô” para nós. Sentia-me uma galinha pequena. Gostava de me sentir assim. Melhor que canário na gaiola, como o ano inteiro na cidade. Fingia que saía. Ficava longe o suficiente para não ser expulsa novamente e perto o suficiente para ouvir direitinho.

Descobri que mulher pode cuidar de mulher. Até aquela idade só ouvia mamãe dizer que não se devia confiar em mulher. Mulher é cobra, repetia. Lá no interior, descobri que não se devia confiar era em homem. Pelo menos não os brutos.

– Eu acho mesmo que foi culpa daquela Cláudia – Dona Cora só repetia isso. Ou era Carmen. Percebi que ela sempre confundia. E como nunca tinha sido apresentada a nenhuma Cláudia ou Carmen nas várias férias ali, imaginei que era alguma moça moderna que tinha vindo da cidade e causado todo o auê.

Uns dois anos depois, o assunto já frio, mesmo com o povo ainda gostando de o requentar aqui e acolá, vim a entender as confusões da Dona Cora. A filha de Don’Ana, a doida, herdou suas revistas e convidou as meninas com mais de dez anos para lerem com ela ao longo daquele verão. Um programa diferente, nem todas gostaram. Tinha o rio com a sombra da árvore para competir. Dependendo do calor, é injusto, eu entendo. Para mim, ficou a sensação de que Jéssica era amiga de verdade por compartilhar aquilo. E vi, não de ouvir falar, mas com meus próprios olhos, que mulher pode cuidar de mulher sim. Talvez sejam as únicas que cuidam.

Numa tarde em que ficamos só nós duas, ela contou a história da mãe. Porque toda cidade falava muito de Maria, louca por ter abandonado um marido com dinheiro só por causa do temperamento difícil. Mas quase ninguém falava de Ana. Um ou outro só murmurava com um risinho no canto da boca: aquela sempre foi assim, né?

Don’Ana não apanhava. Mas nunca havia amado o marido. Assim, talvez tivesse. Um amor de irmão. E ele sabia. E ele entendia. Tudo indica que ele entendia bem demais. Quando viu pela primeira vez uma cuidando do corte na testa da outra, e soprando, e beijando, e fazendo rir, ele entendeu antes delas. Ele entendia demais. Quando o caixeiro atravessou o vilarejo de novo, ele comprou um monte de revistas da cidade, mesmo sendo de meses há muito passados. A vila estava em anos ainda anteriores, certamente. Elas leram juntas. Debateram juntas. Admiraram-se nas concordâncias e ainda mais nas divergências. Passaram muitas horas juntas. Aprenderam coisas novas.

A verdade é que ainda passaram a última ceia na casa de Don’Ana. Pegaram economias e a estrada logo cedo do dia 25.

– Se um de nós ainda pode, tem de tentar ser feliz, meu amor – teria cantado seu Antônio naquela alvorada quente. Ele entendia demais.

Quando voltei para casa, ao final daquelas férias, não tive mais dúvidas. Mamãe sempre preocupada em me fazer independente, talvez pelo trauma que papai deixou, não tardou a perguntar se eu já tinha ideia do que gostaria de ser quando crescesse.

– Agora tenho certeza, mãe. Quero ser jornalista. Dessas que escrevem de mulher para mulher.

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Letras de batom

por Ivan Domingos Oliveira Reis

Há tempos, as redes sociais mudaram a forma como a beleza feminina é percebida. Em meio à conectividade que nos cerca, as representações da mulher, seus costumes e apetrechos foram abraçados pelas artimanhas do mundo digital com apenas um clique. Nesse ecossistema, espelhos mudam de formato, função e sentido. Se os contos de fadas já lhes perguntaram quem é a mais bela, hoje, são “sinceros” o suficiente para usar filtros e efeitos para responder. Olhar-se nesse reflexo pode (ou não) ser simples. É como se concentrar ao passar batom nos lábios em segundos pelo retrovisor do carro. Firmeza e segurança nas mãos e nos olhos. Autoestima a toda prova.

Em um passado não tão distante, o toque dos dedos construía parágrafos de um tempo em que as letras no papel eram o motivo do movimento dos olhos de leitoras assíduas ao longo dos anos. Folhear revista é como navegar por páginas, visualizações e likes. Há mais de trinta anos, revistas femininas – especialmente de moda e comportamento – informam, entretêm e analisam o que o mundo diz. No passado e no presente, captam o espírito do tempo. A tradução dos sentidos, dos desejos e das frustrações do público que as consumia.

Fazendo o diálogo entre imagem e texto, o jornalismo feminino era datilografado por unhas manicuradas e feito à base de uma feminilidade pautada na vida doméstica. O cuidado com os filhos, a preocupação com o lar e com os caminhos que o destino poderia levar às mulheres em um futuro próximo. À luz da cabeceira da cama, a vida foi motivo de leitura antes de dormir, de conversas no salão e nos ateliês de costura. A palavra que circula carrega, e transforma, o sentido de quem a detém. Astúcias da língua e, mais ainda, de quem as percebe.

De tudo o que a beleza define na sua configuração social, na importância que tem para uns e no desprezo para outros, Carmen da Silva é a porta-voz de um tempo cujas ideias ainda ressoam hoje. Abrindo e respondendo cartas de leitoras, a colunista veterana desfiava sentimentos, ações e angústias dos olhos que a leram por mais de vinte anos. Foram textos que sinalizaram o íntimo e o secreto, as fendas e as emendas da existência feminina.

A protagonista de seu tempo roteirizou uma carreira nas entrelinhas das emoções e explorou a alma da mulher parágrafo a parágrafo. Nesse diálogo, a autoestima emerge de um lugar (quase) insólito e coloca a beleza em xeque. Da base do tom próximo à pele, a maquiagem dos textos destaca o brilho cintilante dos sentimentos e corrige o necessário no disfarce das imperfeições. As mãos à máquina também aplicam batom nos lábios.

“Pensamos na malograda Marilyn Monroe, solitária, desesperada, achando que já não valia a pena viver. Pensamos na eterna insatisfação de Brigitte Bardot, em sua tentativa de suicídio, em seus medos e angústias que já se tornaram lugar-comum do jornalismo. Pensamos em Elizabeth Taylor arrastando de escândalo em escândalo, de hospital em hospital, seus filhos de paternidade sortida, emergindo de um romance para cair numa operação, saindo de uma doença para cair num novo e desastrado caso amoroso. Que acontece com essa vênus moderna, que estranha maldição pesa sobre elas?”[1], pergunta-se a colunista em A arte de não ser bela, texto publicado na revista Claudia na década de 1960.

A alma desnuda em seu estado original. Por estas linhas, entendemos como a beleza também carrega a cruz dos problemas. Divas foram colocadas no divã. Despindo-as da aura hollywoodiana que a mídia as reveste, Carmen da Silva prenuncia a essência da mulher que pode se libertar das amarras sociais, dos preconceitos e das convenções de moda e beleza. O demaquilante de valores pré-concebidos. A resposta certeira nos lábios.

Se as aparências ditavam regras no universo da moda, a colunista veterana já tentava desatar alguns nós de sua época. Libertando a feminilidade de uma camisa de força, a sedução feminina é questionada. “Em que consiste ser sedutora? Não é, por certo, uma questão de atitudes ou elementos externos. O que outorga sedução a uma mulher é o ‘estado de amor', uma condição íntima de total receptividade afetiva. É possível amar verdadeiramente alguém quando não se ama a humanidade inteira? E, reciprocamente, é possível amar a humanidade em geral quando se está animado de má vontade contra seus componentes mais próximos? O amor é como um vasto rio que, sem abandonar seu leito, vivifica a terra a suas margens. Dotada de capacidade de amar, a pessoa irradia calor vital, um clima estimulante e acolhedor que chama a simpatia, a amizade, o carinho, a dedicação alheia”[2]. A radiografia da feminilidade, segundo Carmen da Silva.

Pioneira de um tempo em que empoderamento poderia ser uma palavra estranha, mais ainda se associada ao feminino, a colunista tracejou linhas de força e de luz nas páginas escritas na carreira. Pavimentou caminhos para a mulher, fez coro com o feminismo de sua época, aconselhou olhares e defendeu pontos de vista. “A alma é reeducável, ainda mais do que o corpo”, afirmou convicta. Carmen da Silva deixou um legado para o jornalismo feminino de ontem e hoje. A força da palavra escrita com coragem e delicadeza. O espelho da alma riscado por letras de batom.


[1] SILVA, Carmen da. “A arte de não ser bela”. In: O melhor de Carmen da Silva. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1994.

[2] Ibidem.