Escritora brasileira, sucesso na Argentina
Confira, a seguir, a digitalização – na íntegra – de uma resenha sobre a obra Setiembre, primeiro romance de Carmen da Silva escrito e publicado na Argentina, em 1957. O texto foi divulgado no periódico O Diário, de Belo Horizonte, do dia 14/06/58.
Escritora brasileira, sucesso na Argentina
O Diário, Belo Horizonte, 14/06/1958
Último lançamento da editora Goyanarte, um dos maiores vultos do romance argentino em nosso século, o livro de Carmen da Silva, Setiembre, está sendo um dos maiores sucessos literários do momento argentino. Comparada com a americana Pamela Moore, autora de “Chocolate pela manhã”, Carmen da Silva é, todavia, um dos casos mais raros aparecidos na literatura argentina: acontece que ela é brasileira, residindo apenas há alguns anos em Buenos Aires e seu romance se encontra escrito num dialeto bonaerense típico, que, muitas vezes, não é acessível ao próprio argentino de outras regiões. E exatamente por este dialeto vem Carmen da Silva recebendo maiores elogios da crítica!
Na impossibilidade de conseguir o livro em questão (as dificuldades para se conseguir um livro argentino são verdadeiramente intransponíveis em nosso país, já que não há a mínima importação neste setor) oferecemos ao leitor uma resenha crítica, assinada por A.D. (provável sigla para David Almirón) e aparecida no número 12, março-abril, da revista Ficción, publicada pela Goyanarte. (H.M.)
Setembro de 1955. Dia dezesseis, pra sermos precisos. Não é um dia rutilante, nem as ruas nem a arborização brindam os sons de primavera. Um céu que não acaba de ser cinza nem começa a ser azul. Um céu indeciso, cauteloso, sem teto e sem maiores desborde de nada. Um céu nem quente nem frio cobrindo muita gente nem quente nem fria que não diz esta boca é minha porém pensa se não será o momento de começar a dizê-lo... Já temos o momento, o clima e também um pouco do tom do romance.
Não que Carmen da Silva se propunha a narrar a revolução que derrotou o peronismo: ainda que algumas de suas personagens vivem-na de um lado e de outro, e sejam protagonistas dela – como o jovenzinho aliancista,o oligarca de muitos nomes, o peronista que tinha conseguido uma posição, o ex-professor conjurado, etc, a revolução, no romance é essencialmente aquilo: momento e clima. Por isto mesmo, envolve tudo e o que está acontecendo é grande e arrebatador, e em certo momento todo mundo é, se não protagonista, coro. A primeira do romance, amplo e movimentado capítulo significativamente intitulado “O simples fato de viver”, é prévio ao grande acontecimento, porém está prenhado de iminência; e fecha-se com um monólogo da autora sobre a Besta e o Anjo. A segunda parte, que coincide com o começo e o triunfo da revolução, fecha-se com outro monólogo: porém do próprio Anjo. Estes ditos monólogos são, ao mesmo tempo, explicação moral à ideia poética do romance e estão repletos de sopro lírico. Para Carmen da Silva, não é verdade que todo ser humano leve dentro uma fera; segundo ela, o que leva dentro é um anjo, e a fera está por fora, “na superfície da pele”. Ou seja, crê que no fundo o homem é bom; e mau (quando o é, isto é, quase sempre) em sua envoltura, naquilo que de si põe em jogo no sistema de relações, na luta pela vida, no afã de mostrar, tirar proveito da ocasião, gozar a vida.
A fera tende ao oportunismo e à irresponsabilidade; vista a existência humana em sua parte exterior parece toda manifestação, obra e reino da fera, auscultada em sua essência interior, pelo contrário, é sempre uma chamada repetida do anjo à responsabilidade, à dignidade, à consciência moral, à elevação. Fica claro que pouco se ouve o anjo porque é tímido, “tem voz escassa”, é “um pobre diabo de pulmões débeis”; por outra parte não insiste muito porque se cansa e também porque compreende e perdoa muitas coisas; e, além disso, sabe que “é imortal”, que “tem tempo”, que pode esperar. De todos os modos, nos dias da revolução contra um regime que era manifesto domínio da fera, o anjo permite-se um dos seus grandes e não frequentes desafogos; grita e muito, ouvem-no e lança-se fora de milhões de seres que invadiram as ruas, loucos de entusiasmo, ébrios de civismo, desejosos do abraço universal e confiados em que “tudo vai ser melhor”.
O próprio anjo comove-se um pouco: “Pobres homens. Apesar de tudo, buscam-me...” Têm tal fome de mim que se tornam ingênuos”. Mas não é à toa que o anjo é imortal e conhece por experiência que o mundo não vai mudar grande coisa e que os homens continuarão fazendo as coisas de sempre. Contudo, alguma coisa é alguma coisa, e reconhece que, embora de passagem, “todos os caminhos conduzem a mim”, segundo diz. De passagem, é claro: e, entretanto, é preciso “ter paciência”, e esperar que cada um “encontre seu caminho: é o único modo”... Em suma, o deCarmen da Silva parece ser um otimismo precavido que, revelando-se as distâncias, assemelha-se muito ao de Candido depois que foi movimentado de mil modos pela vida neste espinhoso “melhor dos mundos possíveis”, e compreendeu que o que precisa fazer é cultivar seu próprio jardim.
Não se trata em nossa autora, de uma concepção moral impressionante de uma boa disposição de ânimo, temperada pela gordura; e nós a resumimos apenas para dar ideia da atitude psicológica que move a Carmen da Silva. Sob este aspecto e a julgar-se pelos afetos e resultados, é realmente importante. Aquela boa disposição é que faz a penetrante humanidade e a viva simpatia deste romance. Se se cumprissem os dois monólogos ou desafogos aludidos, o livro perderia duas formosas páginas: mas o romance não sofreria a menor perda em sua estrutura orgânica. Ajudam sua compreensão, iluminam-no, dão-lhe um sentido, explicam seu estilo, revelam a fonte subjetiva, forte e preponderante numa obra que, todavia, pareceria à primeira vista inteiramente objetiva, feita de tranches de vie fotografadas ou, mais ainda, radiografadas.
Como técnica narrativa, como maneira de representação Setiembre tem antecedentes: por exemplo, em “Transatlântico”, de Vicki Baum, e sobretudo, em La Colmena, de Camilo José Cela. As três são novelas covais; de protagonista coletivo. Vicki Baum embarca uma quantidade de gente, uma série de destinos e aparências, e vai olhando como se combinam, durante a viagem, como facetas do protagonista coletivo. Carmen da Silva imagina dois hotéis, um equívoco e miserável, o outro rico e luxuoso, e é como se ante seus olhos desaparecessem as paredes e tudo que fazem seus habitantes ficassem a descoberto e vai narrando-o segundo passeia seu olhar de um ponto a outro, sem transições, com a descontinuidade de uma câmara móvel que o operador manobra panoramicamente.
Deixemos de lado o Cela por razões de proximidade. A semelhança do processo técnico não basta para colocar ambos os livros num mesmo plano; Vicki Baum não se levanta por cima do convencional: Carmen da Silva, ao contrário, que realmente vê a besta e ouve o anjo, procede como se estivesse estendida no divã de um psicanalista e estivesse se confessando e, ao dar uma visão da vida, conseguisse a própria catarse; ou então como se fosse ela o psicanalista, deitando no divã e pondo em posição de confessar-se ora a um ora a outro dos seres que formam sua personagem coletiva. Assim desfilam, se entremesclam, perfilam-se e confundem, em ritmos rápidos, vivazes, alucinados, prostitutas e damas, trabalhadores e (petiteros), intelectuais e conjurados, másculos e pederastas, e (la mar em occhi), para usar uma expressão de que a autora abusa. E oferece, através de variadas mostras, uma exemplificação, diríamos edificante, por gráfica e eficaz, do homem e da mulher no que tem de feliz e de desditoso, de bom e de mau, segundo sua condição social e, sobretudo, segundo tenham mais capacidade de ouvir o anjo ou mais inclinação a seguir a besta.
E tudo se desenvolve com a evidência de um destes sonhos, tão patentes que parecem mais reais que o real. Esta evidência e a vivacidade do ritmo talvez sejam as duas características mais positivas da arte de Carmen da Silva, capaz de visão panorâmica sintética e movimentada, assim como da visão que concentra em cada sujeito e se vai fazendo vertiginosamente aguda e ultrapassa as envolturas, as aparências, para radiografar dentro do ânimo e, com mais frequência, as próprias vísceras.
Começa a representar a ação de uma personagem e esta não tarda a ocupar o primeiro plano e a tomar a palavra da autora para monologar por si só, mostrando através do que é ou faz o que queria ser ou fazer, e confessando até mesmo o inconfessável. E isto, esta capacidade, sem inibição de tirar as entranhas e colocá-las, em plena luz, que faz pensar no divã do psicanalista, quer a autora confesse os outros quer se confesse a si própria através dos outros. Isto não importa porque Carmen da Silva leva as coisas a uma essencialidade humana – seria melhor dizer animalemque as diferenças de tu e eu não impedem a identificação no que é fundamentalmente comum. A besta é examinada neste romance como em poucos outros; a voz do anjo nem sempre é perceptível, porém sempre alcança sua piedade, porque indubitavelmente está mais provido de coração que de cordas vocais.
Para conseguir a naturalidade, a imediatez, a evidência sensível, a rapidez de representação, e a força comunicativa, que formam, como já dissemos, a característica de sua excelente maneira de narrar – ou, com maior precisão, seu estilo – Carmen da Silva acha o medo mais apropriado na linguagem falada em Buenos Aires, pouco mais ou menos o dialeto portenho. E aqui se encontra o surpreendente: uma vez que Carmen da Silva não é argentina e apenas há alguns anos vive neste país, de maneira que seu domínio tão direto e efetivo do modo de falar portenho – e quando se diz modo de falar entende-se também modo de sentir, modo de ser, porque a linhagem vive enquanto é expressão da realidade, da alma, da psicologia que a engendram – revivia na autora um poder de captação pouco comum, um alto grau de assimilação. Repetimos: não se trata de palavras, formas ou inflexões exteriormente características, mas sim de uma autêntica expressão substancial, linguagem própria e espontânea do mundo representado.
Sob este aspecto a novela desta escritora brasileira que sente e escreve o portenho representa uma contribuição muito positiva para a atual novelística argentina. Talvez o tom fácil, de conversa portenha, o uso das expressões que estão nos lábios de todos, deixem perplexos ou descontentes aos que prefiramlinguagens brunidas.Para nós, em ato valente dealgoquechamaríamos desnudez psicológica. E, literariamente, alguma coisa mais: um intento quase sempre conseguido, certamente, de dar a uma determinada realidade humana seu verdadeiro sotaque.