Carmen da Silva, uma rio-grandina precursora do feminismo brasileiro.

Traduções evocam polêmica em torno de conto publicado por Carmen na Argentina
8 de novembro de 2024
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Traduções evocam polêmica em torno de conto publicado por Carmen na Argentina

Leia, a seguir, três textos traduzidos por Jesús Pérez García sobre o conto "a menina, o broto e a foto", de Carmen da Silva.  García, em artigo publicado na obra "Para ler Carmen da Silva: precursora do feminismo brasileiro", organizada pela Profa. Dra. Nubia Hanciau e pelo Prof. Dr. Francisco das Neves Alves,  salienta que a publicação deste conto, sob o título original de "La niña, el capullo y el retrato", veio a desencadear um dos episódios mais conturbados e cruciais na vida de Carmen da Silva. De acordo com o pesquisador, o polêmico lance a fez enfrentar a censura argentina e foi motivo de controvérsia pública na imprensa daquele país, colocando a escritora no ponto de mira de setores defensores da onda reacionária conhecida como riestrismo, que inundou a cidade portenha entre finais dos anos 1950 e a primeira metade dos anos 1960. O conto foi publicado na revista Damas y Damitas (Buenos Aires, 25 jan.1961); representou um ponto de inflexão na biografia e obra da escritora, por ser o detonador que a fez enfrentar o fato de ser estrangeira - política, social e moralmente, além do fato de ser mulher; também por marcar o final do seu périplo rio-platense e a mudança para o Rio de Janeiro.

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Escrevo para que existam crianças

Jornal Usted, 13 de fevereiro de 1961

Tradução: Jesús Pérez García

Carmen da Silva (solteira, 35 anos confessos, nascida no estado do Rio Grande do Sul, escritora, residente em Buenos Aires há vários anos, desde a última semana é a vítima mais jovem do riestrismo[1] argentino. Seu conto, La niña, el capullo y el retrato, publicado na revista feminina Damas & Damitas de 25 de janeiro, provocou a reação tardia de cinco aspirantes à vaga do fiscal De la Riestra, concentrados em honorária comissão de Moralidade Assessora do intendente. Aconselhado por Francisco Mario Fassano, Gustavo de Gainza, Félix Lafiandra, Enrique Lavié e Julio Rodofili, o prefeito Giralt e dois dos seus secretários assinaram na terça-feira 7, decreto Nº 196, ordenando o sequestro de todos os exemplares em circulação. Entretanto, Carlos Del Peral Peralta, diretor da renovada D&D, disse a Usted que os inquisidores só lograram apoderar-se de 13 exemplares: a notificação judicial foi tornada pública um dia depois do aparecimento do número posterior, quando os distribuidores – como é comum – já tinham retirado todos os exemplares atrasados de todas as bancas de jornais. Peralta disse que, contudo, nesta quinzena não haverá devoluções, já que o diktat provocou vendas inusitadas, considerando os numerosos pedidos de aumento de cota por parte de entusiasmados vendedores de jornais, encomendados por clientes apaixonadas.

Na oficina da secretaria administrativa da honorária comissão, Usted foi recebido por alarmada funcionária que declamou angustiante poema moralizador: Ninguém que tenha filhas pode deixar entrar na sua casa relatos dessa espécie, afirmou a secretaria em colérico gesto final. A chegada de mais servidores recatados permitiu a Usted informar-se de que a comissão de referência foi constituída por decreto municipal Nº 291 desse ano e que seu funcionamento estava regulado pelo anterior decreto normalizador (Nº 115/58 publicado no Boletim Municipal Nº 10.772) que expõe três critérios básicos para regular a censura: imoral, imoral com caraterísticas de obsceno e uma terceira categoria reservada para aquelas publicações científicas ou artísticas das quais é permitida venda livre apenas em locais fechados.

Por sua vez, Carmen da Silva disse a Usted que não pensa recorrer à SADE[2] procurando proteção porque espera pronunciamento espontâneo da instituição. No entanto, ameaçou com jovial artigo ainda sem destino determinado, onde há referência ao argentiníssimo prurido da moralidade nos seguintes termos:

Acho inexplicável o fato de os argentinos terem um pudor médio mais elevado do que em certos países europeus, como a Suíça, por exemplo, onde não se registram negociatas, imoralidade administrativa, nem golpes de estado. O pudor argentino canaliza-se para um único setor: não utilizar na literatura e no periodismo nenhuma das palavras das quais se abusa na linguagem comum, colocando especial cuidado em evitar alusões anatômicas e insinuações de alcova. Este tipo de pudor me faz lembrar aquele que praticam as velhas beatas que batem com vivacidade e frequência e insultam suas serventes, mas cuidam a literatura que entra na sua casa. A única literatura imoral é a que, como literatura, está mal resolvida. A culpa é dos próprios escritores argentinos que são incapazes de reagir. Eu mesma já assisti a reuniões da SADE sobre censura e comprovei que a maioria dos escritores eram partidários de algum tipo de censura. E se isso não bastasse, cada um dos escritores tem sua própria censura interna, seu próprio freio.

Por fim, a escritora disse que concluiria seu artigo com risonha consideração: Eu diria que a única moralidade[3] no adulto é a que vem do conhecimento do bem e do mal: não da sua ignorância. Mas se os adultos se privam de tudo que não é apto para crianças, vai chegar um momento em que não haverá mais criança. Carmen da Silva disse a Usted que acha seu conto A menina, o broto e a foto um dos relatos seus mais ingênuos; nele tenta descrever um certo tipo de adolescente da classe média endinheirada que é especialmente imaginativa, ainda que precise tempo para animar-se a passar à prática.

Em seu único romance publicado em Buenos Aires (Setiembre, Editora Goyanarte), Carmen relata os inquietos dias vividos por dois grupos sociais portenhos em torno dos dias da Revolução Libertadora: um grupo de personagens mora no Alvear Palace, e o outro em uma sórdida pensão dos arrabaldes. Apenas as concentrações populares estabelecem pontos de contato entre ambos.

Carmen disse ainda a Usted que, dos argentinos, prefere os provincianos, porque eles são mais espontâneos. Em troca, acha os portenhos agressivos e perseguidores, ainda que lhe pareça que isso oculta uma evidente falta de segurança em relação à sua virilidade: Toda a atitude do portenho é de compensação: ele só procura mostrar às mulheres do que ele é capaz. Carmen disse que é vocacionalmente solteira, que sua vida social inicia ao redor das duas da manhã: Em casa, com amigos escritores e jornalistas fazemos uma espécie de dolce vita pobre, com a diferença de que todos nós sabemos o que queremos do mundo e para onde vamos. Também disse a Usted que toma muito álcool, fuma sem parar e anda à disparada.


[1] O termo riestrismo faz referência ao fiscal Guillermo De la Riestra e a sua luta pela moralidade na Argentina. O fiscal De la Riestra ficou tristemente famoso pela ação contra romances, filmes, contos, jornais e revistas, principalmente no período entre o golpe contra Juan Domingo Perón, em 1955, e o golpe militar de 1966. O jornalista usa o termo riestrismo para referir-se a essa corrente moralista argentina. Não foi De la Riestra o impulsor do sequestro do número de Damas & Damitas em que aparece La niña, el capullo y el retrato, mas sim fiscais que seguiam a corrente moralista que ele impulsionou.

[2] Sociedade Argentina de Escritores.

[3] No texto original aparece a palavra ‘inmoralidad’, mas no recorte de Carmen da Silva a primeira sílaba, ‘in’, parece estar borrada com caneta, como se a palavra ‘inmoralidad’ fosse um erro de transcrição da entrevista. Certamente, a frase parece ter um sentido mais em acordo com o conteúdo interpretando que o que ela quis dizer foi que a moralidade vem do conhecimento. É o conhecimento e a possibilidade de escolha que produz a moralidade ou a imoralidade. A inconsciência (ou a ignorância) só poderia levar a um estado de amoralidade tal como é predicado em relação aos animais.

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Um elefante no vestíbulo, por Carmen da Silva

Jornal Gaceta de Tucumán, 13 de março de 1961

Tradução Jesús Pérez García

Imagine o leitor o que seria acordar uma manhã e encontrar um elefante morto no vestíbulo. Não falemos da surpresa: nos tempos que correm já estamos nos curando do espanto. Falemos tão somente do elefante.

Um elefante, mesmo vivo, é um verdadeiro peso morto. Infelizmente, o inverso da afirmativa não corresponde: um elefante morto é duplo peso, dupla morte e duplo elefante.

E aí está a sua volumosíssima massa espalhada, inerte no vestíbulo.Como primeira medida, é preciso tirá-lo dali. Não parece fácil, mas as pessoas determinadas agem em vez de chorar pelo leite derramado ou por paquidermes assassinados.

Tira daqui, empurra de lá, quem sabe seria melhor puxar do outro lado, cuidado com as patas, agora, um dois e...nada. Os vizinhos se prontificam a prestar auxílio e (quando não!) a aportar opiniões. Quem sabe um tabuão sob o corpo, como alavanca..., vamos ver onde é que tem um tabuão. Corda, o ideal seria amarrar-lhe uma corda ao..., mas os elefantes têm pescoço?

Arquejo, forcejo, correria, transpiração e alvoroço. Fadiga e desalento, breve descanso e nova tentativa. Agora já são milhares os que desdobram frenética atividade ao redor do elefante. (“Oh manes”[1] de Ionesco). De vez em quando uma explosão de magnésio registra a magna, a inútil boa vontade dos homens.

E o elefante, imóvel.

No máximo, um violento pontapé nas costas da besta suscita uma levíssima trepidação, um quase imperceptível tremor que se irradia em ondas concêntricas às adjacências da zona pateada. Isso, enquanto não se instala o “rigor mortis”, que nos elefantes costuma ser rigorosíssimo.

Chega o momento em que o desespero começa a engendrar ideias aloucadas, delirantes. Bom, deixamos assim. Depois de tudo, não há de ser impossível viver com um elefante morto no vestíbulo. Aguentá-lo. Suportá-lo. E até, com o tempo, afeiçoar-se por ele.

E no entanto, sim, é impossível. E no fundo o sabemos. Impossível, inadmissível, porque um vestíbulo sem espaço de circulação e contaminado pelas emanações que expele um elefante morto, não é vestíbulo nem é nada.

Estas considerações nascem de um recente episódio que, embora envolvam o exemplar de 25 de janeiro da revista Damas y Damitas retirado de circulação por imoral: a Comissão Honorária de Moralidade – autora do ukase[2] – e a mim pessoalmente, autora do conto objetado, tem por principalíssimo protagonista o já mencionado elefante, esparramado pelo vestíbulo da nossa cultura.

Não é meu propósito, por certo, fazer a defesa do scherzo[3] literário que intitulei “La niña, el capullo y el retrato”. Direi apenas que, por solicitação do diretor de Damas y Damitas, selecionei entre os meus contos um que, pela ingenuidade do tema e a deliberada leveza do tom, pareceu-me adequado para a publicação naquela revista. (Não me sinto responsável por uma grosseira errata, como substituir “olhos que lhe arrancam o velo” por “bocas que lhe arrancam os pelos”[4]; o admirável lapsus calami não ocorre por minha conta).

Quisera somente aproveitar esta oportunidade que me dão de bandeja para expor os meus pontos de vista sobre a censura moralizadora.

Em seu aspecto formal, além de revelar certa... digamos piedosamente, unilateralidade de visão naqueles que a exercem, esse tipo de censura carece de fundamento lógico. Alegam os censores que a sua missão é defender a sensibilidade moral média da coletividade. Ora bem: há negociatas e há pandilhas; há favelas e desídia burocrática; há prostituição masculina (no centro da capital, a partir das 20 horas, os cavalheiros circulam de carro, assoviando, incansável, grosseira e indiscriminadamente, a toda mulher que encontram) e deficiência de material hospitalar; há delinquência juvenil e vidro moído nos potes de conserva. Tudo isso “vulnera”, “desgarra”, “destroça” a sensibilidade moral média, sem que os Catões[5] se sintam aludidos: o importante é que ninguém se beije nas praças, porque quando as pessoas começam a beijar-se nas praças é que chega o caos. Isso, sem falar da “esperteza”, da “artimanha” e do “nepotismo”, palavras muito mais obscenas que qualquer designação anatômica, mesmo a mais contundente.

Outro argumento que esgrimem os censores é a necessidade de preservar a inocência das crianças. (“Ninguém que tenha filhas pode deixar entrar na sua casa contos dessa espécie”, disse uma funcionária da Comissão de Moralidade à revista Usted – exemplar  de 13 de fevereiro de 1961 –, só que Damas y Damitas não é o mesmo que Niñas y Niñitas, revista para a qual eu não colaboro e que, aliás, não existe). Com semelhante afã, deveriam ser suprimidos os jornais (guerras, revoluções, crimes passionais, etc.) nos lares abençoados pelas diminutas e barulhentas presenças. E a literatura clássica?, e os textos de medicina, as reveladoras lâminas anatômicas, as obscenidades ginecológicas, a truculência de um manual de traumatologia ilustrado? E o Código Penal com suas alusões a... horror, horror, é melhor ficar calado.

Gostaria de saber qual é o critério adotado para julgar a imoralidade de uma obra literária. O fato de abrir os olhos a novos setores da experiência? Suprimamos então a filosofia por imoral. A possibilidade de provocar reações de natureza erótica? Pisamos aqui em um terreno sumamente delicado. Constituem legião os indivíduos cujo erotismo está vinculado a determinadas fantasias específicas, pessoais e infinitamente esdrúxulas: a pinta no queixo, o tornozelo fino ou grosso, a trança, o lenço, o nariz com septo desviado, o uso de aparelhos ortopédicos. Stekel relata inúmeros casos de sujeitos para os quais o mais poderoso afrodisíaco era o sapato, calçado em pés humanos ou simplesmente exposto na vitrine de uma loja do ramo. Anomalia, desvio, dir-se-á: sim, com certeza; mas íntima, secreta, inconfessa: um tipo de aberração que – salvo em casos extremos – não impede que um homem case, crie um lar, seja membro útil da coletividade, bom funcionário, advogado, juiz... Isso sim, sem renunciar a um profundoe delicioso abalo visceral cada vez que a literatura (ou a publicidade) lhe oferece a imagem do tornozelo fino, da pinta, da trança, do lenço... imediatamente seguido (o abalo, digo) por uma estrondosa reação moral encobridora.

Mas deixemos de uma vez o âmbito do formal. Vamos ao fundo do prurido moralizador e desmascaremos sua profunda imoralidade essencial.

A censura tenta nos despojar do conhecimento (lucidez), autonomia de consciência (juízo de valor) de liberdade (faculdade de opinião). Ou seja, fechar o caminho para a ética para obrigar-nos a entrar na enrascada de uma duvidosa e precária boa conduta. O cachorro não rouba a carne porque não a deixam ao seu alcance; e enquanto não roubar a carne, será um bom cachorro. Mas, evidentemente, o cachorro não é um ser moral. Em troca, o ser humano sim o é. Portanto, deve ser livre, lúcido e responsável.

A moral “de cuecas” é ridícula, mas enquanto sintoma é grave. Representa o fracasso da razão, a subversão da axiologia, o império do absurdo kafkiano, o desequilíbrio: o elefante morto no meio do vestíbulo.

Não pretendamos uma ética com antolhos; não devemos equivocar-nos, quem leva venda é a justiça.


[1] Segundo a mitologia romana, os manes são as almas já separadas dos corpos. Os manes da família eram tão respeitados quanto as divindades, e habitavam junto aos sepulcros. Em algumas obras do dramaturgo Eugène Ionesco, as almas daqueles que foram embora são utilizadas como representações da interioridade das personagens principais, de forma que um sujeito é feito de muitos sujeitos, cujas almas aparecem em cena. A referência mais provável do uso da expressão por Carmen da Silva é a peça teatral Les Chaises (As cadeiras), de 1952, na qual proliferam, até o palco ficar repleto dos espíritos das pessoas que conviveram com os protagonistas da peça (N. do T.).

[2]Um ukase era uma proclamação do czar na Rússia imperial. A palavra seria equivalente ao que nós conhecemos por “decreto”. De fato, a retirada do número de Damas y Damitas no qual aparece o conto “La niña, el capullo y el retrato” foi efetuada mediante decreto. Carmen da Silva usa a figura do ukase imperial russo para aprofundar-se na crítica ao ato. Talvez seja também uma forma de demonstrar a sua conhecida erudição (N. do T.).

[3] Scherzo é uma palavra italiana que significa “piada”. Daí provém o gênero musical assim chamado, normalmente um movimento que faz parte de uma sonata ou um concerto. Carmen da Silva fala de ‘scherzo literário’, comparando sua obra às peças musicais que são parte de outras peças maiores ou que têm um caráter de brincadeira (N. do T.).

[4] No texto original, “ojos que le arrancan el velo”, por “bocas que le arrancan el vello”. Vello, em espanhol, refere-se ao pelo do corpo. Neste caso tem uma conotação sexual não concreta, mas implícita, já que essas “bocas”, que substituem os olhos, atuam sobre o corpo da personagem (N. do T.).

[5] Catão (Marco Pórcio) foi um escritor e político romano conhecido pela sua atitude conservadora e a defesa das tradições romanas perante ao que ele considerava a frivolidade helenística, que naquele tempo (séculos III e II antes de Cristo) estava sendo adotada por grande parte da população frente às tradições mais austeras do campo do Lácio. A sua luta foi tão relevante que recebeu o apelido de “O Censor” (N. do T.).

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Há moral? Carta a Carmen da Silva (de Juan Jorge Molina Pico)

Jornal Usted, 21 de março de 1961

Tradução Jesús Pérez García

“...Li no nº 17 de Usted o arbitrário julgamento que faz dos argentinos a escritora Carmen da Silva, em relação ao sequestro de um dos seus contos... Solicito que publique as partes pertinentes da carta que lhe enviei e cuja cópia anexo:

“Senhora Carmen da Silva:

Atitudes antipáticas como a sua, explicam que certas pessoas pouco equilibradas pratiquem a mais violenta intolerância contra os estrangeiros (pelos quais sinto simpatia a priori), snobs e qualquer tipo de minoria.

Algo que a senhora parece não saber, é que todo grupo humano organizado tem direito a defender seu patrimônio, formado principalmente por bens espirituais – um deles, o pudor médio, que é algo real e natural e não imposto de cima. Se este direito é eventualmente exercido em forma desmedida (riestrismo[1]), isso não justifica nem autoriza nenhum indivíduo desconforme a atacar essa sociedade – na qual vive porque quer – de forma insidiosa. Se não sabe disso ou não quer fazê-lo à altura, bem... deste país é tão fácil sair como, lamentavelmente, nele entrar.

A senhora diz: “Acho inexplicável o fato dos argentinos terem um pudor médio maior do que em certos países europeus como a Suíça, por exemplo, onde não se registram negociatas, imoralidade administrativa nem golpes de estado”.

Pois acontece com os argentinos o que acontece com todos os seres humanos: não existe entre eles ninguém que seja absolutamente impecável ou absolutamente imoral.

Quanto à sua generalização, segundo a qual os argentinos temos como caraterísticas a desonestidade administrativa, a imaturidade política e a falta de moral nos negócios, é um exemplo claro da sua incongruência.

O que é impossível permitir, por ser falso, é que seja dito com superficialidade que sejamos morais em um só aspecto. A senhora acha chocante que sendo os argentinos (segundo o seu juízo não fundado) possuidores de todos os defeitos, tenhamos ainda um resto de pudor. Segundo a sua particular forma de raciocinar (?) e de acordo com seu melodramático exemplo, digno de um folhetim de inícios do século, essas “velhas beatas”, além de “golpear e insultar com vivacidade e frequência” às suas serventes, deveriam deixar corromper sua família, praticar a usura e caluniar. Quem tiver um defeito, que tenha todos, parece ser seu lema.

A senhora se contradiz quando diz: “a culpa é dos próprios escritores argentinos que são incapazes de reagir”, e, na seguinte linha: “Eu mesma assisti a reuniões... e constatei que a maioria dos escritores eram partidários de algum tipo de censura”. Reagiria alguém sensato contra o que acha justo?

Se fosse a senhora como é – estrangeira, snob (S.N. “sem nobreza”) e insolente – mas pertencente ao sexo oposto ao que tão mal representa, outros teriam sido os termos por mim usados. Lembre que nem sempre calar sobre o que se pensa é covardia, mas educação; nem dizer o que se quer é sinceridade, mas insolência...”


[1] Tal como foi indicado no artigo Carmen da Silva:“escrevo para que existam crianças”, o termo riestrismo faz referencia à corrente moralista que houve na Argentina entre os anos 1955 e 1966. Famoso pela ação contra romances, filmes, contos, jornais e revistas, o fiscal Guillermo De la Riestra deu nome a essa corrente que levou ao sequestro do número de Damas & Damitas em que aparece o conto La niña, el capullo y el retrato, de Carmen da Silva.