Carmen da Silva, rainha da ousadia
“Não é necessária muita perspicácia para perceber sintomas de insatisfação nas mulheres de hoje. Casadas e solteiras, ociosas e trabalhadoras, estudantes e profissionais, artistas e donas de casa, todas elas em algum momento deixam transparecer resquícios de frustração, um desejo ora nostálgico, ora invejoso, de outra existência diferente, outro caminho distinto ao que escolheram – como se a felicidade estivesse lá. Pareceria que lá – o lado oposto, o inatingível – se encontrasse tudo o que é belo e desejável, tudo o que nos proporcionaria um verdadeiro senso de realização.”
(Carmen da Silva. A arte de ser mulher, 1966, p. 3)
Fui apresentada a Carmen da Silva no ano de 1966, quando um pretendente a namorado presenteou-me com o livro A arte de ser mulher - um guia moderno para o seu comportamento. Eu contava vinte e um anos e ainda não tomara conhecimento da coluna que a autora mantinha na revista Claudia desde 1963. Em casa de minha mãe e meu pai não circulavam revistas femininas. Não havia renda para os extras. Pela mesma razão, eu não frequentava salões de beleza, onde revistas como Claudia eram, desde então, oferecidas ao entretenimento das clientes. Minha ida ao salão só ocorria quando havia baile, impondo-se elevar o cabelo em coque estupendo com a ajuda de uma bucha de Bom Bril. Outra opção para armar o monumento era tecer um murundu com parte dos cabelos e usar a parte restante para cobrir a base e decorar o penteado. Mas este procedimento não condizia com meus cabelos finos e pouco fartos. Para finalizar a obra, lançava-se uma chuva de laquê, de modo que os olhos já chegavam irritados à festa. E, passada uma longa sessão de música sem que nenhum cadete tirasse a moça para dançar, a noite acabava em choro no escondidinho do banheiro. Ai, como era apertada a vida de uma moça bem comportada!
Meu paquera devorava textos marxistas, mas certamente ainda não havia lido o livro de Carmen. Se o tivesse lido, teria escolhido outro título para me presentear. Mal sabia a bomba que punha em minhas mãos! O livro é apresentado pela Editora Civilização Brasileira como integrante da “Biblioteca da Mulher Moderna”, seção indicada como “entretenimento ou ilustração para um público feminino esclarecido”. Entretanto, a obra de Carmen em muito transcende as obras de entretenimento e os escritos de aconselhamento ou consultório sentimental, como reconhece o próprio editor, Edison Carneiro, chamando a atenção de leitoras e leitores para os comentários de Carmen ao longo dos textos no sentido de propor e discutir a independência da mulher.
Com o requinte de uma escrita bem humorada, com vertical compreensão das relações humanas, com sólida consciência feminista, logo no primeiro artigo - “A Protagonista” - Carmen vai à questão fundamental: sejamos “protagonistas duma aventura apaixonante e singular: nossa própria vida.” E já neste primeiro grupo de artigos sob o título “Uma pauta para viver melhor”, Carmen lança o desafio: “Você vive ou vegeta?”
Entrei na universidade em 1967. Participei do movimento estudantil. Em 1968, fui eleita representante dos alunos do curso de Letras da antiga UEG para o Congresso da UNE, em Ibiúna. Fui presa, é claro. O meu namoro com o camarada comunista corria leve e promissor. Em plena ditadura, nossa relação recendia a liberdade. Compartilhávamos o gosto pela boa música, o sonho com a revolução socialista, os desafios intelectuais das sessões de arte do cinema Paissandu. Casamos. Em 1970, realizei meu inadiável desejo de ser mãe. Um ano depois, estávamos separados.
Até então, as questões levantadas por Carmen em A arte de ser mulher não me inquietavam. Meu foco era a militância de esquerda, era a denominada “luta de classes”, era a construção da frente ampla contra o regime militar, sem chances para os temas que as lideranças viessem a considerar divisionistas. Na verdade, foi preciso casar, separar, casar de novo, parir quatro adoráveis criaturas, para sentir na pele as situações descritas por Carmen em A arte de ser mulher.
Em 1975 o feminismo eclode no Rio. Contávamos com a participação de Carmen da Silva a nos apontar com inteligência os sutis mecanismos das desigualdades de gênero. O impulso do movimento feminista veio do exterior, mas é inegável que por aqui encontrou eco e se disseminou por ação de Carmen da Silva, por sua radiosa presença, por sua escrita palatável e não menos contundente.
De início, as mulheres de esquerda aderiram timidamente ao movimento. As feministas, como Carmen, eram as outras. Em verdade, eram livres para opinar e protagonizar bandeiras, independentemente da aprovação dos comitês diretivos dos partidos. Danda Prado, chegada de Paris em 1979, aportou em nossas reuniões e, com seu jeito sempre gentil, nos intimou: o que vocês fazem aqui não é feminismo. Se não falam de violência doméstica e de sexualidade feminina e descriminalização do aborto, não são feministas. Muitas mulheres optaram por seus partidos e se afastaram do perigo divisionista incitado pelas feministas autônomas. Outras tantas ousaram divergir. Foi o meu caso. Desconsiderei as advertências dos companheiros do PCB e, de corpo e alma, formei com as feministas - um caminho sem volta do qual muito me orgulho.
O livro de Carmen, presente de meu namorado, marido por curto período, mas amigo de toda a vida, eu perdi. Pode ter sido em 1969, quando a polícia da ditadura impôs urgente desmonte do apartamento onde residíamos. Mas Carmen da Silva entrou em minha vida e em meu universo afetivo. Anda-me sempre por perto a instigar minha consciência feminista. Recentemente, via internet, encontrei um exemplar de A arte de ser mulher num sebo de Porto Alegre. Vejo-o agora sobre minha mesa de trabalho em bom estado de conservação, como bem conservada está minha memória das noites de boa conversa com Carmen em casa de Mariska Ribeiro, onde muitas de nossas ações foram articuladas.
Carmen da Silva nasceu no Rio Grande do Sul em 1919. De lá partiu ainda jovem em busca de formação intelectual e independência. Tornou-se jornalista, psicanalista, escritora. No dia 8 de março de 1983 foi coroada e aclamada em passeata pelas ruas do Rio como a grande dama do feminismo brasileiro. Carmen faleceu em 29 de abril de 1985, deixando para todas nós, mulheres, um guia para a busca de nossas verdades e, mais que isso, o exemplo de que é possível assumir o leme de nossas vidas, com determinação e ousadia.
Comba Marques Porto
Rio de Janeiro, 29/04/2011
(revisado pela autora em 20/04/2013)